segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Maria Santíssima, modelo de Oração

Sábado da 23ª Semana depois de Pentecostes



Oportet semper orare et non deficere – “Importa orar sempre e não cessar de o fazer” (Lc 18, 1)


Sumário. Desde o instante em que a Santíssima Virgem recebeu a vida, e com esta o uso perfeito da razão, começou também a orar e nunca mais deixou de orar até ao seu último suspiro. Se Maria, tão santa e imaculada, foi tão amante da oração, quanto mais nós a devemos amar, que estamos tão propensos ao mal e temos inimigos tão fortes que combater? À imitação de nossa querida Mãe, habitemos com os nossos afetos no céu, nunca percamos de vista a eternidade e seja a oração o nosso único ornato.

I. Jamais existiu neste mundo quem com tanta perfeição como a Santíssima Virgem executasse o grande preceito de nosso Salvador: Importa orar sempre e não cessar de o fazer. Pelo que diz São Boaventura, que ninguém melhor que Maria nos pode servir de exemplo e ensinar a necessidade que temos de perseverar na oração.

Primeiramente, como escreve Dionísio o Cartusiano, a oração da Virgem foi toda recolhida e sem distração alguma. Isenta como ficara do pecado original, estava também livre de qualquer afeto terrestre e de todo o movimento desordenado, e todos os seus sentidos estavam sempre em harmonia com o seu bendito espírito. Assim a sua bela alma, livre de todo o empecilho, elevava-se incessantemente a Deus, amava-O sempre e crescia sempre no amor.

A oração da Bem-aventurada Virgem foi além disso continua e perseverante. Desde o primeiro momento em que juntamente com a vida ela recebeu o uso perfeito da razão, começou também a fazer oração. Para melhor se aplicar à oração quis, sendo menina de três anos, encerrar-se no templo, e ali, além das outras horas destinadas à oração, levantava-se sempre à meia noite, como ela mesma disse à santa virgem Isabel, para orar diante do altar do templo.

Com tal fim também, e para sempre meditar nas penas de Jesus, como diz Odilon, Maria, depois da Ascensão do Senhor, visitava muitas vezes os lugares santos da Palestina, ora a Gruta de Belém, onde o Filho nasceu; ora a casa de Nazaré, onde o Filho viveu tantos anos, pobre e desprezado, ora o horto de Getsêmani, onde o filho começou a sua Paixão; ora o pretório de Pilatos, onde foi açoitado e coroado de espinhos; ora o Calvário, onde o viu expirar; e, finalmente, o sepulcro, no qual o acomodou com as suas próprias mãos. — Numa palavra, toda a vida da Santíssima Virgem foi uma oração contínua. E, como conclui o Bem-aventurado Alberto Magno, ela foi excelentíssima nesta virtude, e depois de Jesus Cristo a mais perfeita de todos quantos tem existido, existem ou existirão. Felizes de nós se a soubermos imitar!

II. Se Maria, toda santa e imaculada como era, foi sempre tão amante da oração, para se conservar e crescer na graça divina, com muito mais razão devemos nós amar e praticar esta virtude, nós que tão fracos somos, tão propensos ao mal, e que temos inimigos tão poderosos para combater e vencer. — Tratemos, pois, de imitar o espírito de oração de nossa boa Mãe, e procuremos reproduzir em nós o que o devoto Taulero diz da Santíssima Virgem: Mariae cella fuit coelum — “A morada de Maria foi o céu”. Seja o céu também a nossa habitação, e fixemos nele pelo afeto a nossa morada contínua. Schola aeternitas — “A sua escola foi a eternidade”. Nunca percamos de vista a eternidade, vivendo sempre desapegados dos bens terrestres. Paedagogus divina veritas — “Seu mestre foi a verdade divina”. Tomemos por nosso mestre aquele que é a verdade essencial, e guiemo-nos em nossas ações pela luz divina. Speculum divinitas — “O seu espelho foi a divindade”. Sirva-nos a divindade de espelho; tenhamos sempre Deus em mira, para nos conformarmos com a sua vontade. Ornatus eius devotio — “O seu adorno foi a devoção”. Seja também a devoção o nosso ornato, e estejamos sempre prontos a fazer a vontade de Deus. Numa palavra, façamos consistir a nossa paz na união com Deus, e seja Deus todo o repouso e todo o tesouro de nossa alma: Quies, unitas cum Deo.

Ó grande Mãe de Deus, proponho-me sempre a imitar os vossos santos exemplos e especialmente o vosso espírito de oração. Vós, porém, que conheceis a minha fraqueza e inconstância no bem, ajudai-me pela vossa intercessão. Fazei-me pontual em recomendar-me sempre a vós e a vosso Filho em todas as minhas necessidades, sobretudo nos perigos de ofender o meu Senhor. Minha Rainha, atendei-me; fazei-o pelo grande amor que tendes a Jesus Cristo.

Sexta palavra de Jesus Cristo na Cruz

6ª feira da 23ª Semana depois de Pentecostes




Cum ergo accepisset Jesus acetum, dixit: Consummatum est – “Jesus, havendo tomado o vinagre, disse: Tudo está consumado” (Jo 9, 30)


Sumário. Consideremos como Jesus moribundo, antes de expirar, percorreu em espírito toda a sua vida. Viu todos os seus trabalhos penosos, as suas dores, as ignomínias suportadas e tudo isso ofereceu-o de novo a seu eterno Pai para a salvação do mundo. Em seguida, virando-se para nós, disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: “Ó homens, nada mais tenho a fazer para ser amado por vós; tempo é que afinal resolvais amar-me.” Amemos, portanto, a Jesus e provemos-Lhe nosso amor fazendo e sofrendo alguma coisa por seu amor, assim como Ele fez e sofreu tanto por nosso amor.

I. Nosso amabilíssimo Jesus, chegado o momento de render o último suspiro, disse com voz moribunda: Tudo está consumado. Pronunciando estas palavras, repassou em seu pensamento todo o decurso de sua vida, viu todos os seus trabalhos, a pobreza, as dores, as ignomínias que tinha sofrido e tudo ofereceu de novo a seu Pai pela salvação do mundo. Depois, voltando-se para nós disse: Tudo está consumado. — Foi como se dissesse: Homens, tudo está consumado, tudo está cumprido; a ora da vossa redenção se completou, a divina justiça está satisfeita, o paraíso está aberto. Et ecce tempus tuum, tempus amantium (1) — “Eis aqui o vosso tempo, o tempo dos que amam”. É tempo, enfim, ó homens, de vos resolverdes a amar-me. Amai-me, pois, amai-me; porque nada mais tenho a fazer para ser amado por vós.

Tudo está consumado. Vede, disse então Jesus moribundo, vede o que tenho feito para adquirir o vosso amor. Por Vós tenho levado uma vida cheia de tribulações; no fim de meus dias, antes de morrer, consenti que fosse derramado o meu sangue, que me escarrassem no rosto, que me despedaçassem o corpo, que me coroassem de espinhos; finalmente, sujeitei-me a suportar as dores da agonia sobre este madeiro em que me vedes. Que resta fazer? Uma só coisa: expirar por vós. Sim, quero morrer. Vem, ó morte, eu to permito, tira-me a vida pela salvação de minhas ovelhas, amai-me, amai-me, porque já não posso ir mais longe para me fazer amar. Consummatum est — “Tudo está consumado”.

Amemos, pois, a nosso Jesus, e, conforme à exortação do Apóstolo, provemos-Lhe nosso amor, correndo com paciência generosa ao combate que em vida teremos de sustentar conta os nossos inimigos espirituais; provemos-lho resistindo até ao fim as tentações, a exemplo de Jesus Cristo mesmo, que não desceu da cruz antes de expiar e quis consumar o seu sacrifício até morrer: Per patientiam curramus ad propositum nobis certamen, aspicientes in auctorem fidei et consummatorem Iesum (2) — “Corramos pela paciência ao combate que nos é proposto, olhando para o autor e consumador da fé, Jesus”.

II. Quando as paixões interiores, as tentações do demônio, ou as perseguições da parte dos bons, nos fizerem perder a paciência e aceitar a ofensa de Deus, olhemos para Jesus crucificado que derramou todo o seu sangue pela nossa salvação e lembremo-nos que por seu amor não temos ainda derramado uma só gota de sangue: Nondum enim usque ad sanguinem restitistis, adversus peccatum repugnantes (3) — “Ainda não resististes até o sangue, combatendo contra o pecado”.

Quando tivermos de ceder em algum pundonor, de reprimir algum ressentimento, de nos privarmos de alguma satisfação, de alguma curiosidade ou de outra coisa inútil à nossa alma, tenhamos pejo de o recusarmos a Jesus Cristo. Jesus se nos deu sem reserva, deu-nos toda a sua vida, todo o seu sangue: tenhamos, pois, pejo de usarmos de reserva para com Ele. Não nos enfastiemos de fazer e sofrer alguma coisa por amor de Jesus Cristo, que por nossa salvação chegou, no dizer de Taulero, “a consumar tudo o que a justiça divina exigia, tudo o que o amor pedia, tudo o que podia dar um claro testemunho de seu amor”.

Meu amabilíssimo Jesus, tomara que eu também pudesse dizer morrendo: Senhor, tudo está consumado; tenho feito tudo que me mandastes, tenho levado com paciência a minha cruz, tenho procurado agradar-Vos em tudo. Ah, meu Deus! Se tivesse de morrer agora, morreria bem descontente de mim mesmo, pois nada disto poderia dizer. Mas, Senhor, viverei sempre tão ingrato ao vosso amor? Suplico-Vos que me concedais a graça de Vos agradar nos anos de vida que me restam, a fim de que, quando vier a morte, possa dizer-Vos que ao menos desde o dia de hoje cumpri a vossa vontade. — Se no passado Vos ofendi, a vossa morte é a minha esperança; para o futuro não Vos quero trair mais. De Vós espero a minha perseverança; eu a peço e o espero, ó meu Jesus, pelos vossos merecimentos. — Ó Maria, Mãe das dores, ajudai-me pela vossa intercessão.
Referências:

(1) Ez 6, 8
(2) Hb 12, 1
(3) Hb 12, 4

O que fazer na presença do Santíssimo Sacramento

5ª feira da 23ª Semana depois de Pentecostes



Delectare in Domino, et dabit tibi petitiones cordis tui – “Deleita-te no Senhor, e te outorgará as petições do teu coração” (Sl 36, 4)

Sumário. Estas palavras ensinam-nos como temos de nos haver na presença de Jesus no Santíssimo Sacramento. Diante do tabernáculo, agradeçamos ao Senhor os muitos benefícios que nos fez, especialmente o querer Ele ficar conosco sobre o altar; amemo-Lo com todas as nossas forças e ofereçamo-nos a Ele sem reserva. Afinal supliquemos a Jesus Cristo as graças de que necessitamos, principalmente o aumento do amor e a união à sua vontade divina. Oh! Se nós soubéssemos aproveitar bem da companhia de nosso divino amante, em breve seríamos todos santos.

I. A condessa de Feria, feita religiosa de Santa Clara, escolheu uma cela donde se avistava o altar do Santíssimo Sacramento, e aí se demorava quase todo o tempo, de dia e de noite. Perguntada sobre o que fazia durante longas horas na igreja, respondeu:

“Ah! Eu ficaria ali durante toda a eternidade. Que é o que se faz diante do Santíssimo Sacramento? Agradece-se, ama-se e pede-se.”
— Eis ai, meu irmão, um belo método para aproveitares bem o tempo na presença de Jesus no Santíssimo Sacramento.

Em primeiro lugar, agradece-se. És tão agradecido a um parente que veio de longe para te visitar, e não tens uma palavra de gratidão para Jesus Cristo, que desceu do céu, não só para te visitar, mas para estar sempre contigo? Quando, pois, o visitares, antes de mais nada aviva a tua fé, adora o Esposo de tua alma e rende-Lhe graças pela bondade com que por teu amor fixou a sua morada sobre esse altar.

Em segundo lugar, ama-se. Quando São Filipe Neri na sua doença viu o santo Viático em seu quarto, exclamou todo abrasado em amor: Eis ai o meu amor! Eis ai o meu amor! Assim dize tu também, quando vires a sagrada Custódia; multiplica então os atos de amor que tanto agradam a Jesus, e renunciando a toda vontade própria consagra-te a Ele todo e sem reserva, dizendo: Senhor, fazei com que eu sempre Vos ame, e depois disponde de mim como Vos agradar.

Por fim, pede-se. O Venerável Padre Alvarez viu no Santíssimo Sacramento Jesus com as mãos cheias de graças, mas sem achar a quem distribuí-las, porque ninguém ia pedi-las. Portanto, pede-as tu; roga-lhe que te dê força para resistir às tentações, para te emendar de qualquer defeito, para te livrar de alguma paixão… Pede-lhe em particular que aumente em teu coração a chama de seu amor e te conserve bem unido a sua santa vontade, fazendo-te sofrer em paz todos os desprezos e contrariedades. Ah! Se todas as almas fizessem assim e soubessem aproveitar-se bem da companhia de seu divino Esposo, em breve todas se tornariam santas.

II. Ó meu Jesus, eu vos adoro no Santíssimo Sacramento do altar. Vós sois o mesmo Jesus que um dia por meu amor sacrificastes a vossa vida divina sobre a cruz e agora estais encerrado na Custódia, como em uma prisão de amor. Entre tantos outros que Vos ofenderam menos do que eu, quisestes escolher-me para Vos fazer companhia sobre a terra, a fim de que depois Vos vá amar e gozar sem véu no paraíso. Além disso me convidais a alimentar-me muitas vezes na santa comunhão com a vossa santa carne, afim de me unir todo a Vós e me fazer todo vosso. Meu amado Redentor, que Vos poderei dizer? Agradeço-Vos e espero ir um dia agradecer-Vos no céu por toda a eternidade: Miserircordias Domini in aeternum cantabo (1) — “Eu cantarei eternamente as misericórdias do Senhor”. Sim, meu Jesus, assim espero pelos vossos merecimentos.

Declaro que estou mais contente por ter deixado por vosso amor o mundo e o pouco de que no mundo podia gozar, do que por ser rei de toda a terra. Arrependo-me de Vos ter dado até agora em vossa casa tantos desgostos pelos quais merecia ser expulso. Perdoai-me, ó meu Jesus; com o vosso auxílio d´oravante não será mais assim. Não me quero mais afastar de vossos pés, quero visitar-Vos muitas vezes. A vossa presença me dará forças para desprender-me de todo o afeto que não seja para Vós; perto de Vós lembrar-me-ei sempre da obrigação que tenho de Vos amar e de recorrer a Vós em todas as minhas necessidades. Desejo permanecer sempre a vossos pés e receber-Vos freqüentemente na comunhão, a fim de Vos amar sempre mais e unir-me convosco, meu amado Salvador.

Amo-vos, ó meu Deus, oculto no Santíssimo Sacramento. Por amor meu é que ficais continuamente neste altar; por vosso amor, quero ficar o mais que puder na vossa presença. Aqui encerrado me amais sem cessar e eu também Vos quero amar sem cessar; assim, meu Jesus e meu tudo, estaremos sempre juntos aqui durante a minha vida e depois durante a eternidade no paraíso.

— Ó Maria, minha Mãe, rogai a Jesus por mim e consegui-me um grande amor ao Santíssimo Sacramento.
Referências:

(1) Sl 88, 2

Para a Salvação é necessário o sacrifício da vontade

4ª feira da 23ª Semana depois de Pentecostes




Qui facit voluntatem Patris mei, qui in coelis est, ipse intrabit in regnum coelorum – “O que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse entrará no reino dos céus” (Mt 7, 10)


Sumário. O que faz a vontade de Deus, entrará no céu; o que não a faz, não entrará. Se portanto quisermos ser salvos, renunciemos à nossa vontade própria, e entregando-a sem reserva a Deus, digamos frequentes vezes cada dia: Senhor, ensinai-me a cumprir a vossa vontade santíssima; protesto não querer senão o que quereis Vós. Para que estejamos sempre dispostos a cumprir a vontade divina, é utilíssimo que desde de manhã nos representemos as contrariedades que nos possam suceder durante o dia.

I. O que faz a vontade de Deus, entrará no céu; o que não a faz, nele não entrará. Alguns fazem depender a sua salvação de certas devoções, de certas obras exteriores de piedade, e entretanto não cumprem a vontade de Deus. Jesus Cristo, porém, diz: “Não todos aqueles que me dizem: Senhor, Senhor, entrarão no reino dos céus; mas entrará somente o que faz a vontade de meu Pai” — Qui facit voluntatem Patris mei, qui in coelis est, intrabit in regnum coelorum.

Portanto, se nos quisermos salvar e chegar à união perfeita com Deus, habituemo-nos a rogar-lhe sempre com Davi: Doce me, domine, facere voluntatem tuam (1) — “Senhor, ensinai-nos a fazer a vossa santa vontade.” Ao mesmo tempo desfaçamo-nos da vontade própria e entreguemo-la toda inteira e sem reserva a Deus. — Quando damos a Deus os nossos bens pela esmola, o alimento pelo jejum, o sangue pela disciplina, damos-lhe a nossa própria pessoa. Eis porque o sacrifício da vontade própria é o sacrifício mais aceito que possamos fazer a Deus; e Deus enriquece de graças ao que o faz.

Porém, para que tal sacrifício seja perfeito, deve ter duas qualidades: deve ser feito sem reserva e constantemente. Alguns dão a Deus a sua vontade, mas com reserva, e semelhante dádiva pouco agrada a Deus. Outros dão a Deus a sua vontade, mas logo em seguida tornam a retomá-la, e estes se expõem a grande risco de serem abandonados de Deus. Por isso, todos os nossos esforços, desejos e orações devem ser dirigidos ao fim de obtermos de Deus a perseverança em não querermos senão o que Deus quer. Habituemo-nos a antever desde de manhã, no tempo da meditação, as tribulações que nos possam suceder no correr do dia e a fazermos continuamente atos de resignação à vontade Divina. Diz São Gregório: Minus iacula feriunt, quae praevidentur — “São menos dolorosas as feridas antevistas”.

II. Meu Jesus, cada vez que eu disser: Louvado seja Deus, ou Seja feita a vontade de Deus, tenho intenção de aceitar todas as vossas disposições a meu respeito, no tempo e na eternidade. — Só quero o emprego, a habitação, os vestuários, o nutrimento, a saúde que me tendes destinado. Se quereis que meus negócios não surtam feliz êxito, meus projetos se esvaeçam, meus processos se percam, tudo quanto possuo seja roubado, eu também o quero. Se quereis que eu seja desprezado, odiado, posposto aos outros, difamado e maltratado, até por aqueles a quem mais amo, eu também o quero. Se quereis que eu fique privado de tudo, banido de minha pátria, encerrado numa prisão e viva em penas e angústias contínuas, eu também o quero. Se quereis que esteja sempre enfermo, coberto de chagas, estropiado, estendido sobre um leito, abandonado de todos, eu também o quero; tudo seja como Vos agradar e por quanto tempo quiserdes.

Minha vida mesma ponho nas vossas mãos e aceito a morte que me destinais; aceito igualmente a morte de meus parentes e amigos e tudo o que quiserdes. Quero também tudo o que quereis no que diz respeito ao meu bem espiritual. Desejo Vos amar com todas as minhas forças nesta vida e ir Vos amar no paraíso como Vos amam os Serafins; mas contente fico com o que bem quiserdes conceder-me. Se não quereis dar-me senão um só grau de amor, graça e glória, não quero mais do que isto, porque Vós assim o quereis. Prefiro o cumprimento de vossa vontade a todos os bens.

Numa palavra, ó meu Deus, de mim e de tudo o que me pertence, disponde como for vossa vontade; com a minha não tenhais consideração alguma, pois só quero o que Vós quereis. Qualquer que seja o tratamento que me deis, amargo ou doce, agradável ou penoso, aceito-o e abraço-o, porque tanto um como outro me virá de vossa mão. — Aceito, meu Jesus, de maneira especial a morte que me espera e todas as penas que devem acompanhá-la, no lugar e momento que for vossa vontade. Unindo-as à vossa santa morte, ó meu Salvador, Vo-las ofereço em testemunho de meu amor a Vós. Quero morrer para Vos agradar e cumprir vossa divina vontade. — Ó Maria, Mãe de Deus, obtende-me a santa perseverança.
Referências:

(1) Sl 142, 10

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A felicidade dos bem-aventurados no céu

3ª feira da 23ª Semana depois de Pentecostes




Intra in gaudium Domini tui – “Entra no gozo de teu Senhor” (Mt 25, 21)

Sumário. Os bem-aventurados contemplando a Deus face a face e conhecendo as suas infinitas perfeições, amam-No imensamente mais que a si próprios e não desejam outra coisa senão verem-No feliz. Sabendo, além disso, que o seu Senhor goza e gozará eternamente uma felicidade infinita, acham nisto a sua complacência e o seu gozo e é este gozo de Deus que constitui o seu verdadeiro paraíso. Habituemo-nos a fazer muitas vezes atos de amor perfeito a Deus, alegremo-nos com o Senhor pela sua felicidade infinita, e assim começaremos a exercer na terra o ofício dos bem-aventurados no céu.

I. Vejamos o que seja que torna os santos moradores do céu plenamente felizes. A alma do Bem-aventurado, vendo Deus face a face e conhecendo a sua beleza infinita e todas as perfeições que o fazem digno de amor infinito, não pode deixar de O amar com todas as forças e ama-O mais que a si mesma. Mas esquecendo-se de si própria, o seu único pensamento e desejo é ver contente e feliz o seu Deus. Vendo, pois, que Deus único objeto de todos os seus afetos, goza de uma beatitude infinita, esta beatitude de Deus é que constitui o seu paraíso. — Se em um Bem-aventurado pudessem caber coisas infinitas, a vista da beatitude infinita de seu Amado lhe causaria igual beatitude infinita. Mas porque um gozo infinito não pode caber na criatura, fica ao menos tão repleta de alegria que nada mais deseja. É esta a saciedade pela qual suspirava Davi, quando disse: Satiabor, cum apparuerit gloria tua (1) — “Saciar-me-ei, quando aparecer a tua glória”.

Assim se realizará o que Deus diz à alma, dando-lhe posse do paraíso:

“Entra no gozo de teu Senhor.”
Não diz ao gozo que entre na alma, porque, sendo infinito, não cabe numa criatura. Diz que a alma entre no gozo para participar dele, mas participar de tal forma que fica saciada e repleta. — Portanto entre os atos de amor de Deus, que se podem fazer na oração, não há ato mais perfeito do que o comprazer-se na felicidade infinita de que Deus está gozando. É este o exercício contínuo dos Bem aventurados no céu; de sorte que o que se compraz na felicidade de Deus, começa a fazer cá na terra o que espera fazer no céu por toda a eternidade.

É tão grande o amor para com Deus de que os Bem-aventurados no céu estão abrasados, que se jamais lhes viesse o medo de perderem a Deus ou de não O amarem com todas as forças, assim como O amam, tal temor lhes faria sofrer uma pena igual ao inferno. Mas não; eles estão certos, como o são da posse de Deus, que O amarão sempre com todas as forças e sempre serão amados de Deus e que esse amor recíproco não acabará mais nunca. Meu Deus, pelo amor de Jesus Cristo, fazei-me digno de tamanha ventura.

II. Santo Agostinho tinha razão quando disse que para se obter uma beatitude eterna, seria preciso um trabalho eterno. Para ganhar o paraíso é pouco o que fizeram os eremitas com suas penitências e orações, pouco o que fizeram os santos deixando parentes, riquezas e reinos; pouco o que padeceram os mártires nos cavaletes, nas coraças em brasa, pelas mortes mais cruéis.

Cuidemos ao menos em carregar com alegria as cruzes que Deus nos envia; porquanto, se viermos a nos salvar, todas elas se mudarão para nós em gozos eternos. Quando nos aflijam as enfermidades, as dores ou outras adversidades, levantemos os olhos ao céu e digamos: Um dia todas estas penas terminarão e depois espero gozar da posse de Deus para sempre. Animemo-nos a sofrer e a desprezar todas as coisas do mundo. Suportemos tudo e desprezemos as coisas criadas. Jesus está à nossa espera, tendo na mão a coroa para nos coroar reis do céu, se lhe formos fiéis.

Ó meu Jesus, como posso eu pretender à posse de tão grande bem? Eu que por umas satisfações miseráveis da terra renunciei abertamente ao paraíso e calquei aos pés a vossa amizade? Mas o vosso sangue anima-me a esperar o paraíso, depois de ter merecido tantas vezes o inferno. Sim, porque Vós quisestes morrer na cruz exatamente para dar o paraíso a quem não o merecia. Meu Redentor e meu Deus, não Vos quero mais perder, dai-me vossa graça para Vos ser fiel. Adveniat regnum tuum — “Venha a nós o vosso reino”; peço-Vos pelos merecimentos de vosso sangue que me deixeis entrar um dia em vosso reino. Enquanto não chegar a hora de minha morte, fazei que eu cumpra perfeitamente a vossa vontade; é nisso que consiste o maior bem e o paraíso de que nesta terra pode gozar o que Vos ama. Fiat voluntas tua —“Seja feita a vossa vontade”.

— A vós também, ó grande Mãe de Deus e minha Mãe, Maria, peço esta graça.
Referências:

(1) Sl 16, 15

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Remorso do condenado por causa do bem que perdeu

2ª feira da 23ª Semana depois de Pentecostes




Perditio tua, Israel; tantummodo in me auxilium tuum – “A tua perdição, ó Israel, toda vem de ti; só em mim está o teu auxílio” (Os 13, 9)

Sumário. O que mais atormenta o réprobo no inferno é o ver que perdeu o céu e o Bem supremo, que é Deus; e perdeu-O não por qualquer acidente ou por malevolência d´outrem, mas por sua própria culpa. Meu irmão, se no passado nós também tivemos a insensatez de renunciar por malícia própria ao paraíso, remediemo-lo enquanto houver tempo, antes que tenhamos de chorar eternamente a nossa desgraça. Talvez seja este o último apelo que Deus nos dirige.

I. O tormento mais feroz do réprobo será reconhecer o grande bem que perdeu. Segundo São João Crisóstomo, os réprobos sentirão mais aflição pela perda do paraíso que pelos tormentos do inferno: Plus coelo torquentur, quam gehenna. — Refere-se que a infeliz Isabel, rainha de Inglaterra, disse:

“Conceda-me Deus quarenta anos de reinado e renuncio ao paraíso.”
Teve a infeliz esses quarenta anos de reinado; mas que dirá agora, que a sua alma saiu deste mundo? Sem dúvida já não pensa da mesma forma. Como não deve estar aflita e desesperada, ao pensar que, por quarenta anos de reinado, passados em temores e angústias, perdeu para sempre o reino celestial?

Mas, o que por toda a eternidade afligirá mais o réprobo será reconhecer que perdeu o céu e o soberano bem que é Deus, e que o perdeu não por algum mau acidente, nem pela malevolência d´outrem, mas por sua própria culpa. Verá que foi criado para o paraíso, verá que Deus lhe pôs na mão a escolha entre a vida e a morte eterna: Ante hominem vita et mors… quod placuerit ei dabitur illi (1). Verá, pois, que esteve na sua mão, se quisera, o tornar-se eternamente feliz. Mas verá igualmente que de seu motuproprio se quis precipitar nesse abismo de suplícios, de onde nunca poderá sair e de onde ninguém o procurará livrar.

Verá então o miserável que muitas pessoas de seu conhecimento, que passaram pelos mesmos, quiçá por maiores perigos de pecar, chegaram à salvação, ou porque se souberam conter recomendando-se a Deus, ou, se caíram, souberam levantar-se a tempo e dar-se a Deus. Ele, porém, por não ter querido pôr um termo a suas desordens, veio a acabar tão deploravelmente no inferno, nesse mar de tormentos, sem esperança de poder remediar a sua desgraça. Oh, que cruel remorso! Oh, que desespero lancinante!

II. Meu irmão, se no passado foste tão insensato para querer sacrificar o paraíso e Deus a uma indigna satisfação, procura quanto antes aplicar o remédio, agora que ainda é tempo. Não sejas obstinado em teu desvairamento. Receia ir chorar um dia a tua desgraça na eternidade.

— Quem sabe se a presente consideração não será o último apelo que Deus te dirige? Se desde já não mudares de vida, quem sabe se no primeiro pecado mortal que venhas a cometer, o Senhor não te abandonará para te condenar em seguida a sofrer eternamente entre essa multidão de insensatos, que estão agora no inferno e lá confessam seu erro, mas confessam-no desesperados, vendo que a sua desgraça é irremediável. Quando o demônio te tentar de novo ao pecado, lembra-te do inferno e recorre a Deus e à Santíssima Virgem. O pensamento do inferno te livrará do inferno: Memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis (2) — “Lembra-te de teus novíssimos e nunca jamais pecarás”.

Ah! Meu Bem supremo, quantas vezes Vos perdi por um nada e quantas vezes mereci perder-Vos para sempre! Tranquiliza-me, porém, a palavra de vosso Profeta: Laetetur cor quaerentium Dominum (3) — “Alegre-se o coração dos que buscam o Senhor”. Não devo, pois, perder a esperança de Vos tornar a encontrar, ó meu Deus, se Vos procurar com coração sincero. Ó Senhor, neste momento suspiro mais pela vossa graça que por qualquer outro bem. Consinto em ser privado de tudo, até da vida, mas não em ver-me privado de vosso amor. Amo-Vos, ó Jesus meu Deus, sobre todas as coisas e por isso que Vos amo me arrependo de Vos ter ofendido.

Ó meu Deus, perdido por mim e desprezado, perdoai-me já e fazei que Vos encontre sem demora, porque nunca mais Vos quero perder. Se me receberdes novamente em vosso amor, quero renunciar a tudo e amar só a Vós: assim o espero de vossa misericórdia. — Padre Eterno, atendei-me pelo amor de Jesus Cristo. Perdoai-me e concedei-me a graça de nunca mais me separar de Vós, porque, se viesse a perder-Vos de novo por própria culpa, devia com razão recear que me abandonásseis.

— Ó Maria, ó reconciliadora dos pecadores, reconciliai-me com Deus. Guardai-me debaixo de vossa proteção, a fim de que nunca mais chegue a perder meu Deus.
Referências:

(1) Eclo 15, 18
(2) Eclo 7, 40
(3) Sl 140, 3

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

O tributo de Cesar e a obrigação de amar a Deus

Domingo da 23ª Semana depois de Pentecostes




Reddite quae sunt Caesaris Caesari, et quae sunt Dei Deo – “Dai a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21)

Sumário. Para convencer os fariseus da obrigação de pagarem tributo a Cesar, o divino Redentor mostrou-lhes a imagem estampada na moeda com que costumavam pagar o tributo. Lancemos nós também um olhar sobre nós mesmos: consideremos que fomos criados por Deus à sua imagem e semelhança; lembremo-nos mais que no santo batismo nos foi impresso o caráter indelével de discípulos de Jesus Cristo, e facilmente chegaremos a esta bela conclusão: Dai a Deus o que é de Deus.

I. É esta a bela resposta que no Evangelho de hoje Jesus Cristo dá aos fariseus, que, com o intuito maligno de o apanharem em suas palavras, o interrogavam sobre se era ou não lícito pagar o tributo: “Dai a Cesar o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus“. Por estas palavras quer ensinar-nos que devemos dar aos homens o que ele o quer todo para si.

Isto é de inteira justiça, porque o Senhor não é somente a primeira Verdade, mas além disso o supremo Bem. Como portanto o nosso entendimento paga a Deus, como à primeira Verdade, o tributo de submissão pela fé, crendo sobre a palavra de Deus coisas que não compreende; assim a nossa vontade deve pagar a Deus, como ao Bem supremo, um tributo de afeto, “amando-o com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças” (1). Tanto mais que é unicamente para cativar o nosso amor que Jesus se fez homem, nos remiu com o seu preciosíssimo sangue e morreu sobre a cruz nos mais atrozes tormentos.

Ó meu lastimoso Redentor! Quantos são os que Vos amam? Vejo a maior parte dos homens ocupados em amarem, uns os parentes, outros os amigos, outros até os animais; mas Jesus não é amado; ao contrário, é ofendido e pago com a mais negra ingratidão. – Meu irmão, quero crer que te achas em estado de graça e por isso quero crer que amas Jesus Cristo. Podes, porém, dizer que o amas de todo o teu coração?… És porventura um daqueles que, levando vida tíbia, nutrem a ilusão de poderem servir ao mesmo tempo a dois senhores inteiramente opostos, como são Deus e o mundo? – Ah! Lembra-te, assim te direi com São Felipe Neri, que todo o amor que consagramos às criaturas é roubado de Deus; se não cuidarmos em séria emenda, acabaremos cedo ou tarde por o roubarmos todo.

II. Observa o Evangelho que, para convencer os fariseus da necessidade de pagar o tributo, Jesus se fez mostrar a moeda do tributo, e referindo-se a ela, disse:

“De quem é esta imagem e inscrição”
E tendo eles respondido: “É de Cesar“, o Senhor logo acrescentou: “Dai, pois, a Cesar o que é de Cesar“. Como se dissesse: Já que do imperador recebestes a moeda, justo é que lh’a restituais pagando o tributo.

É o que tu também deves fazer para que mais facilmente te resolvas a pagar teu tributo a Deus. Pergunta muitas vezes a ti mesmo: Cuius est haec imago et superscriptio? – “De quem é esta imagem e inscrição?”. Quer dizer: Põe-te a considerar que foste criado por Deus à sua imagem e semelhança e para o único fim de o amares; considera mais que no santo Batismo te foi impresso o caráter indelével de discípulo de Cristo; e logo chegarás à conclusão que deves dar a Deus o que é de Deus: Reddite ergo quae sunt Dei, Deo.

Ó meu Senhor, visto que me quereis todo para Vós, eis que me dou a Vós todo inteiro, sem reserva. Não quero que outro qualquer me roube uma parte deste coração que Vos criastes só para Vós, ó bondade infinita, digna de amor infinito. O meu coração é muito pequeno para Vos amar tanto como mereceis. Que injustiça, pois, não Vos faria, se o quisesse dividir para amar outra coisa que não seja Vós? Não, meu Jesus amabilíssimo, só a Vós quero amar, e nesta vida e na outra nada desejo senão o tesouro de vosso amor, ó Deus de meu coração e minha herança para sempre (2).

Não desprezeis o amor de um pecador que outrora Vos ofendeu; abrasai sempre mais em mim as felizes chamas do amor, e sede em toda ocorrência o meu refúgio e a minha força.

– “Ó Pai Eterno, pelo amor de Jesus Cristo atendei-me, pois que sois o mesmo autor da piedade, e fazei que eficazmente consiga o que Vos peço com viva confiança” (3).

† Doce Coração de Maria, sede minha salvação.
Referências:

(1) Dt 6, 5
(2) Sl 15, 5
(3) Or. Dom. curr.

Necessidade da intercessão de Maria Santíssima

Sábado da 22ª Semana depois de Pentecostes




Gens et regnum, quod non servierit tibi, peribit – ““A gente e o reino que te não servir, perecerá” (Is 60, 12)

Sumário. Para a salvação, a graça divina é indispensável. Verdade é que esta graça nos foi merecida por Jesus Cristo, o Medianeiro de justiça; mas a dispensadora da graça é Maria Santíssima, por ser Mãe de Deus. É por isso que o demônio tanto esforço faz para arrancar da alma a devoção à Santa Virgem. O espírito maligno sabe que obstruído este canal de graças, tudo está perdido. Examinemo-nos, pois, se temos devoção verdadeira à divina Mãe e, descobrindo que nos temos relaxado, retomemos o nosso primeiro fervor.

I. Que a prática de invocar aos Santos, a fim de nos alcançarem a divina graça, seja não somente lícita, mas também útil, é um ponto da fé. Entre os Santos, porém, que são amigos de Deus, e a Santíssima Virgem, que é sua verdadeira Mãe, há esta diferença, que a intercessão de Maria não é só utilíssima, mas também moralmente necessária, de modo que o Bem-aventurado Alberto Magno e São Boaventura chegam a afirmar que todos os que se descuidam da devoção a Nossa Senhora, não a servem, e consequentemente não são por ela protegidos, morrerão todos em pecado mortal e se condenarão:

“A gente que te não servir, perecerá”.
É esta, diz Soares, a opinião universal da Igreja.(1)

E com razão; porquanto, não sendo nós capazes de conceber um só bom pensamento em ordem à vida eterna, a graça divina nos é indispensável para a salvação. Verdade é que só Jesus Cristo nos mereceu esta graça, por ser Medianeiro de justiça. Mas, para nos inspirar mais confiança de obtermos a graça, e ao mesmo tempo para exaltar sua Mãe Santíssima, Jesus a depositou nas mãos de Maria, e, constituindo-a medianeira de graça, decretou que nenhuma graça fosse dispensada aos homens sem que passasse pelas mãos de Maria.

Numa palavra, diz São Bernardo, Deus constituiu Nossa Senhora como que um aqueduto dos bens celestes que descem à terra e determinou que por meio de Maria recebamos o Salvador que por seu intermédio nos foi dado na encarnação. Vede, pois, conclui o Santo, vede, ó homens, com que afeto de devoção quer o Senhor que honremos à nossa Rainha, refugiando-nos sempre a ela e confiando em seu patrocínio!

II. Assim como Holofernes, para conquistar a cidade de Betúlia, ordenou que se cortassem os aquedutos, também o demônio faz quanto pode, a fim de que as almas percam a devoção à Mãe de Deus. Pela experiência, o espírito maligno sabe que, tapado este canal das graças, depois fácil ou, antes, certamente consegue conquistá-las. Quantos cristãos estão agora no inferno por se terem deixado iludir assim. — Nós, portanto, demos graças à divina Mãe, por nos ter tomado debaixo de seu santíssimo manto, como nô-lo garantem as graças recebidas pela sua intercessão. Ao mesmo tempo, porém, examinemos se por ventura estamos resfriados na sua devoção e renovemos nosso propósito de sermos para o futuro mais constantes.

Sim, eu vos dou graças, ó minha Mãe amorosíssima, por todos os bens que tendes feito a este desgraçado réu do inferno. Ó minha Rainha, de quantos perigos me tendes livrado! Quantas luzes e quantas misericórdias me tendes alcançado de Deus! Que grande bem, ou que grande honra recebestes de mim para vos empenhardes tanto a meu favor? Foi só a vossa bondade que a isso vos moveu. Ah! Se eu pudesse dar por vosso amor o sangue e a vida, ainda seria pouco, à vista da obrigação que vos devo, pois que me livrastes da morte eterna e me fizestes recuperar, como espero, a graça divina; a vós sou devedor de toda a minha felicidade.

Senhora minha amabilíssima, eu, miserável, não tenho que vos dar senão os meus louvores e o meu amor. Ah, não desprezeis o afeto de um pobre pecador, abrasado em amor pela vossa bondade. Se o meu coração é indigno de vos amar, por estar imundo e cheio de afetos terrestres, vós o podeis mudar: mudai-o, pois. — Ah, minha Senhora prendei-me a meu Deus e prendei-me de tal modo que nunca mais possa separar-me de seu amor. Vós quereis que eu ame o vosso Deus; e eu quero que me alcanceis este amor; fazei que o ame sempre e nada mais deseje.
Referências:

(1) Tom. 2 in 3 p., disp. 23, sect. 3.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Quinta palavra de Jesus Cristo na Cruz

6ª feira da 22ª Semana depois de Pentecostes




Sciens Jesus quia omnia consummata sunt, ut consummaretur Scriptura, dixit: Sitio – “Sabendo Jesus que tudo estava cumprido, para se cumprir ainda a escritura, disse: Tenho sede” (Jo 19, 28)


Sumário. É dupla a sede que sofre Jesus moribundo: a sede corporal, causada pelo cansaço das caminhadas, pela tristeza interior e pelo muito sangue derramado. Outra sede espiritual, isso é, o desejo da salvação eterna de todos os homens, que O faz anelar maiores tormentos, se for preciso. Ah! Se nos lembrássemos sempre desta dúplice sede do Senhor, não procuraríamos delicadezas supérfluas e esforçar-nos-íamos por reconduzir as almas a Deus. Longe de nos queixarmos das tribulações, desejá-las-íamos maiores por amor de Jesus Cristo.

I. Quando Jesus estava próximo à morte, disse: Tenho sede — Sitio, a fim de nos manifestar a grande sede corporal que experimentava, quer pelo cansaço causado pelas muitas caminhadas, quer pela tristeza interior, mas principalmente pelo muito sangue derramado no horto, na flagelação, na coroação de espinhos e finalmente sobre a cruz, onde corria abundantemente das chagas das mãos e dos pés, como de quatro fontes. — Jesus Cristo quis padecer este tormento pungentíssimo para que compreendamos quão caro lhe custaram a nossa gulodice e intemperança, causadoras de tantas queixas e murmurações nas famílias e nas comunidades sob pretexto de saúde e de necessidade.

Mais do que pela sede corporal foi Nosso Senhor aflito atormentado por uma sede espiritual, nascida, como escreve São Lourenço Justiniani, da fonte do amor: Sitis haec de amoris fonte nascitur. Com efeito, porque é que Jesus, que não faz menção das outras penas imensas padecidas sobre a cruz, se queixa unicamente da sede? Ah, exclama Santo Agostinho, a sede de Jesus Cristo é o desejo de nossa salvação. Jesus, assim acrescenta São Gregório, ama as nossas almas com excesso de amor e por isso almeja que tenhamos sede dele: Sitit sitiri Deus.

São Basílio dá mais outra explicação e diz que Jesus Cristo manifesta a sua sede para nos dar a entender que pelo amor que nos tem, morria com o desejo de padecer por nós, mais ainda do que tinha padecido: O desiderium Passione maius! Meu irmão, lembremo-nos muitas vezes da dúplice sede de Jesus Cristo. Então não procuraremos mais as delicadezas supérfluas e nos esforçaremos por reconduzir as almas ao seio paternal de Deus; em vez de nos lamentarmos das cruzes que Ele nos envia, aceitá-las-emos com resignação e com desejo de carregarmos por seu amor outras cruzes mais pesadas.

II. Qual foi o alívio que os judeus deram à sede ardente do Redentor? Somente aquele que Davi predissera tanto tempo antes: Dederunt in escam meam fel, et in siti mea potaverunt me aceto (1) — “Deram-me na minha comida fel e na minha sede me propinaram vinagre”. Ó barbaridade inaudita! Exclama São Lourenço Justiniani, ó crueldade sem limites Para apagar a sede a um pobre moribundo, dá-se vinagre misturado com fel! E o povo que trata assim Nosso Senhor é o mesmo que por Ele foi tantas vezes beneficiado com água milagrosa!

Mas de igual maneira e com a mesma ingratidão apagam a dúplice sede de Jesus Cristo os cristãos que pecam por intemperança e que, em vez de reconduzirem as almas ao regaço paterno de Deus, as afastam d’Ele pelos seus maus exemplos. Se no passado nós também temos sido do número de tais ingratos, peçamos perdão ao Senhor e roguemos-Lhe nos dê a graça de O amarmos mais fervorosamente para o futuro.

Ah, meu Senhor, Vós tendes sede de mim, verme desprezível, e eu não terei sede de Vós, meu Deus infinito? — Suplico-Vos pela sede que padecestes sobre a cruz, dai-me uma grande sede de Vos amar e de Vos agradar em tudo! Prometestes dar-nos tudo quanto Vos pedirmos: Petite et accipietis (2). Eis o único favor que Vos peço: o dom de vosso amor. Reconheço minha indignidade, mas a glória de vosso Sangue seja o fazer-Vos amar por um coração que Vos tem desprezado tanto tempo; o abrasar no fogo do amor a um pecador todo cheio de lodo do pecado. Mais do que isto é o que fizestes morrendo por mim.

Ó Senhor infinitamente bom, quisera amar-Vos tanto quanto mereceis. Comprazo-me no amor que Vos têm as almas, vossas diletas, e mais no amor que tendes a Vós mesmo; com ele uno o meu amor miserável. — Amo-Vos, ó Deus eterno, amo-Vos, ó amabilidade infinita. Fazei que eu cresça sempre mais em vosso amor, multiplicando os atos de amor e procurando agradar-Vos em todas as coisas, sem interrupção e sem reserva. Fazei com que, miserável e vil como sou, seja ao menos todo vosso.

— Maria, minha Mãe, intercedei por mim. Fazei-o pela Paixão de vosso divino Filho.
Referências:

(1) Sl 68, 22
(2) Jo 16, 24

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Comemoração de todos os Fiéis Defuntos

5ª feira da 22ª Semana depois de Pentecostes




Sancta et salubris est cogitatio pro defunctis exorare, ut a pecatis solvantur — “É um santo e salutar pensamento orar pelos mortos para que lhes sejam perdoados os seus pecados” (2 Mach. 12, 46).

Sumário. A devoção às almas do purgatório é muito agradável ao Senhor, e utilíssima ao que a pratica. Jesus Cristo ama imensamente estas suas esposas e suspira pelo momento em que as possa estreitar contra o peito; e as santas prisioneiras mostrar-se-ão gratas para aquele que lhes obtém o livramento do seu cárcere ou ao menos algum alívio nas suas penas. Sufraguemos, pois, constantemente as almas do purgatório, particularmente neste mês e neste dia consagrados à sua memória.

I. A devoção às almas do purgatório, que consiste em recomendá-las a Deus para que lhes alivie as grandes penas que padecem e as chame em breve para a sua glória, é muito agradável ao Senhor e utilíssima ao que a pratica. Sim, porque Jesus Cristo ama imensamente essas almas; e posto que a sua justiça inexorável o constranja, por assim dizer, a mostrar-se para com elas Juiz severo e exigir que sejam limpas de toda a mancha antes de serem admitidas ao céu, no qual não entrará coisa alguma contaminada — Non intrabit aliquod coinquinatum (1) — , não deixa isso, todavia, de ser um estado de constrangimento. Jesus suspira pelo momento em que poderá apertar contra o peito as suas santas esposas e coroa-las rainhas do seu reino bem-aventurado. — É este um dos motivos pelos quais estabeleceu a comunicação dos santos, quer dizer uma comunicação mútua de bens entre nós e as Igrejas, trinfante e padecente. Além disso impõe-nos Deus o preceito de praticarmos o bem para com os defuntos: Mortuo non prohibeas gratiam (2) — “Não impidas que a liberalidade se estenda aos mortos”.

As santas prisioneiras do purgatório serão gratas àquele que lhes obtém o livramento daquele cárcere, ou ao menos algum alívio das penas e nunca mais se esquecerão daquele que por elas intercedeu. Piamente se pode crer que Deus lhes revele as nossas orações, a fim de que elas orem também por nós. — Verdade é que as almas do purgatório não podem rezar para si mesmas, porque ali se acham como condenadas, que satisfazem pelas suas culpas; todavia porque são muito queridas de Deus, podem orar por nós e obter-nos muitas graças.

Quando Santa Catarina de Bolonha desejava obter alguma graça, recorria às almas do purgatório, e logo se via atendida. Declarou que por intermédio dessas almas alcançou diversas graças que não tinha alcançado por intermédio dos Santos. São inúmeras as graças que os devotos afirmam terem obtido pela intercessão das santas almas do purgatório.

II. Se as almas do purgatório já se mostram agradecidas aos seus devotos, mesmo quando ainda estão penando naquele cárcere; se-lo-ão muito mais depois de entradas na glória celeste. Alcançar-lhes-ão os favores mais assinalados e especialmente a salvação eterna. — Tenho por certo que uma alma, livre do purgatório pelos sufrágios de algum devoto, uma vez entrada no céu, não deixará de dizer a Deus: “Senhor, não permitais que se perca aquele que me livrou do cárcere do purgatório e me fez entrar mais depressa na alegria do vosso reino.”

Avivemos, pois, a nossa devoção para com essas santas prisioneiras. Sobretudo no dia de hoje, em que a Igreja celebra a sua comemoração, apliquemos-lhe todas as nossas orações. No correr do mês de Novembro, que a devoção dos fiéis lhes consagrou, ofereçamos em seu sufrágio alguma esmola, algum jejum ou qualquer outra mortificação. Para o mesmo fim, freqüentemos os santos sacramentos e façamos algumas vezes a Via Sacra. — Mas sobretudo ouçamos por elas, o mais possível, a santa missa, e, se o permitir a nossa condição, mandemos celebrar alguma missa, que é o sufrágio mais proveitoso às almas. Afirma São Jerônimo que “cada missa devotamente celebrada faz sair várias almas do purgatório”, e em outra parte: “As almas que penam no purgatório, pelas quais o sacerdote ora durante a celebração da missa, não sentem as penas enquanto durar a celebração.”

Meu amabilíssimo Jesus, “Deus Criador e Redentor de todos os fiéis, concedei às almas dos vossos servos e servas a remissão de todos os seus pecados, para conseguirem com pias súplicas a indulgência, que sempre desejaram. — Ó Senhor, dai-lhes o descanso eterno e a luz perpétua lhes resplandeça.” (3) — Peço-vos também esta graça, ó Maria, grande Mãe de Deus e Mãe daquelas almas que padecem tanto. — Almas benditas, roguei por vós e sempre por vós rogarei; mas já que sois tão queridas de Deus e estais certas de que não o podeis mais perder, rogai por mim, miserável, que estou ainda em perigo de me condenar e de perder a Deus para sempre. (*II 466.)

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1. Apoc. 21, 27.
2. Ecclus. 7, 37.
3. Or. Fest

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Festa de Todos os Santos


4ª Feira da 22ª Semana depois de Pentecostes
01 de Novembro

SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS




“Vidi turbam magnam, quam dinumerare nemo poterat, ex omnibus gentibus, et tribubus et populis et linguis” — “Vi uma grande multidão, que ninguém poderia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Apoc 7, 9).

Sumário. São três os fins principais que a Igreja tem em mira mandando celebrar a solenidade de todos os Santos. Quer em primeiro lugar que honremos os seus filhos que já triunfam no céu e especialmente àqueles que no correr do ano não tiveram uma festa própria. Para que as nossas homenagens nos aproveitem, ela quer em segundo lugar, que nos excitemos à prática do bem, pela esperança do céu. Finalmente quer a nossa boa Mãe aumentar a nossa confiança, dando-nos a entender que esses nossos bem-aventurados Irmãos se empenham para nos obter os favores divinos. Que fins tão nobres e consoladores!

I. Considera os fins nobilíssimos que a Igreja tem em mira, fazendo-nos celebrar hoje a solenidade de todos os Santos. Quer em primeiro lugar que honremos os seus Filhos, que já estão de posse do céu em companhia do Esposo divino, e especialmente àqueles que no correr do ano não tiveram uma festa própria. Ao mesmo tempo, quer que em nome do Santos demos graças a Deus.

Desejando que estas homenagens nos sejam proveitosas, quer a Igreja que nos sirvam para elevarmos o nosso espírito ao céu e nos excitemos à prática das virtudes pela contemplação dos bens eternos que lá em cima nos esperam, se perseverarmos. — Tanto mais que entre os milhões de Santos que hoje veneramos, há muitos de nossa idade e condição, e talvez, como nós, grandes pecadores. Parece que a Igreja nos diz hoje com Santo Agostinho: “Não poderás tu fazer o que puderam fazer eles?” Tu non poteris quod isti et istae?

Finalmente, com a solenidade presente, a Igreja quer aumentar a nossa confiança, recordando-nos o dogma da comunicação dos santos, e ensinando-nos que todos esses bem-aventurados irmãos querem empenhar a nosso proveito todo o poder de que gozam junto do Rei da glória. — Oh, que verdade tão consoladora! Os Santos do céu, lá no meio do seu triunfo, não se esquecem das nossas misérias, e oferecem-nos o seu auxílio. No dizer de São Bernardo, já que os Santos nada mais têm que pedir para si mesmos, porque são plenamente felizes, têm um vivo desejo de interceder por nós, e se não nos tornamos indignos pelas nossas faltas, obtêm-nos de Deus tudo o que querem. Que verdade tão consoladora! Que fins sublimes da parte da Igreja na instituição da festa de todos os Santos!

II. Entrando nas vistas sublimes de nossa Madre, a santa Igreja, elevemos hoje os nossos corações ao céu, onde reina um Deus onipotente, todo solícito em beatificar as almas, suas queridas filhas. Contemplemos como esses bem-aventurados Compreensores gozam ali delícias tais, que a linguagem humana não pode exprimir. Alegremo-nos com eles, rendamos em seu nome graças a Deus, e tomemos ânimo ao pensar que para nós também terminarão um dia os temores, as doenças, as perseguições, todas as cruzes; mais ainda, se nos viermos a salvar, tudo isso será para nós motivo de júbilo e glória no céu.

Animados, pois, pelo desejo que os Santos têm de nos ajudar, lancemo-nos em espírito aos seus pés e exponhamos-lhes confiadamente as nossas necessidades. Não nos esqueçamos também de rogar a eles pelos pobres pecadores e pelo livramento das almas do purgatório, a fim de que amanhã, no dia da sua comemoração, possam em grande número ir a gozar com os Santos no céu.

Ó Santos e Santas de Deus, ó bem-aventurados Espíritos angélicos, que estais abismados nos resplendores da glória divina! eu, vosso humilde servo, vos saúdo deste vale de lágrimas, venero-vos com amor, e dou graças ao Senhor vos ter sublimado a tão alta beatitude. Mas vós, lá dos vossos tronos excelsos, dignai-vos volver a mim vossos olhos piedosos. Vede os perigos que corro de me perder eternamente. Pelo amor de Deus, que é a vossa grande recompensa, obtende-me a graça de seguir fielmente as vossas pegadas, de imitar corajosamente os vossos exemplos, de copiar em mim as vossas virtudes; a fim de que, de admirador que sou, chegue a ser um dia o vosso companheiro na glória imortal.

“Onipotente e eterno Deus, que me concedeis a graça de venerar em uma só festividade os méritos de todos os vossos Santos, concedei-me também que, multiplicados os meus intercessores, obtenha a plenitude das vossas misericórdias.” (1) Fazei-o pelo amor de Jesus e de Maria.”

O Grande Segredo da Morte


4ª feira da 22ª Semana depois de Pentecostes




O mors, bonum est iudicium tuum homini indigenti – “Ó morte, é bom o teu juízo para o homem necessitado” (Eclo 41, 3)

Sumário. Durante a vida, as paixões fazem que os bens terrestres pareçam de modo muito diferente do que são; a morte, porém, mostra-os na sua verdade: fumaça, lodo e miséria. Meu Deus! Para que servirão as riquezas, quando não nos restar senão uma simples mortalha? Para que servirão honras e dignidades, quando não tivermos nada senão um cortejo fúnebre? Para que servirá a beleza do corpo, quando nada mais nos ficar senão vermes e podridão? Que grande segredo é o da morte! Como seria bem regrada a nossa vida se o soubéssemos aproveitar bem!

I. Oh, quantas pessoas podem repetir a palavra do rei Ezequias: Praecisa est velut a texente vita mea (1) — “A minha vida foi cortada como por um tecelão”. Apenas estão urdindo a tela, isto é, planejando e executando os seus projetos terrestres, combinados com tanta prudência, senão quando vem a morte e põe fim a tudo! Então, ao clarão do último facho, todas as coisas do mundo desaparecem: aplausos, regozijos, pompas e grandezas. — Grande segredo o da morte! Ela nos faz ver o que não veem os amantes do mundo. As fortunas mais cobiçadas, os postos mais eminentes, os triunfos mais magníficos, perdem todo o brilho, quando considerados no leito da morte. Convertem-se então em indignação contra a nossa própria loucura as ideias que tínhamos formado acerca de certas felicidades ilusórias. A sombra negra e sinistra da morte encobre e obscurece todas as dignidades, sem excetuar as dos reis.

Durante a vida, as paixões fazem que os bens terrestres pareçam muito diferentes do que são; a morte tira-lhes a máscara e mostra o que são na verdade: fumaça, lodo, vaidade e miséria. — Meu Deus, para que servirão na hora da morte riquezas, título, reinos, quando nada nos restar senão um esquife de madeira e uma simples mortalha para nos cobrir o corpo? Para que servirão as dignidades e as honras, quando nada mais tivermos senão um cortejo fúnebre e pomposas exéquias, que de nada valerão à alma, se esta estiver perdida? Para que servirá a beleza do corpo, quando, ainda antes de morrer, se tornar em vermes, podridão e pouco depois em um punhado de pó infecto?

Posuit me quasi in proverbium vulgi, et exemplum sum coram eis (2) — “Ele me reduziu a ser como um provérbio do povo, e estou feito diante deles um exemplo”. — Morre tal ricaço, tal ministro, tal general e sua morte será apregoada por toda a parte; mas se viveu mal, tornar-se-á alvo dos ataques do povo; e como prova da vaidade do mundo e também da divina justiça, servirá para exemplo dos outros. – Na cova estará confundido entre os cadáveres dos pobres: Parvus et magnus ibi sunt (3) — “O pequeno e o grande ali estão”. Que lhe valeu a bela estatura do corpo, agora que não é senão um montão de vermes? Que lhe valeu a autoridade que possuía, agora que seu corpo está condenado a apodrecer numa vala e sua alma a arder no inferno?

II. Se quisermos dirigir bem as nossas ações e avaliar bem as coisas deste mundo, avaliemo-las como no leito de morte. Tempus breve est (4). O tempo é breve, diz o Apóstolo; tudo passa e acaba depressa. Por isso, imaginando cada dia que estamos próximos da morte, apressemo-nos a fazer o que então quiséramos ter feito. Quem sabe se a morte não nos virá surpreender de improviso? — Oh, que miséria! Vivermos apegados aos bens transitórios e descuidarmo-nos dos eternos! Que insensatez! Servirmos aos outros de assunto para reflexões úteis e não as termos feito para nosso próprio proveito!

Persuadamo-nos de que, para remediar as desordens da consciência, não é próprio o tempo da morte, mas sim o da vida. A razão nô-lo persuade; porquanto um homem mundano achar-se-á então fraco de espírito, escurecido e endurecido de coração, pelos maus hábitos adquiridos e as tentações serão mais veementes. O que em vida costumava ceder-lhes e deixar-se vencer, como lhes resistirá na morte? Seria mister uma graça divina mais poderosa, e será porventura Deus obrigado a concedê-la? Ou tê-la-á merecido o homem pela vida desregrada que levou?

Ó Deus de minha alma, ó bondade infinita, tende piedade de mim, que tanto Vos tenho ofendido. Sabia que, pecando, perdia a vossa graça e quis perdê-la. Dizei-me: que tenho eu a fazer para a recuperar? Se quereis que me arrependa dos meus pecados, eu me arrependo de todo o coração e quisera morrer de dor. Se quereis que espere o perdão de vossa misericórdia, eu o espero pelos merecimentos de vosso Sangue. Se quereis que Vos ame sobre todas as coisas, tudo deixo, renuncio a todas as doçuras e vantagens que me pode oferecer o mundo e amo-Vos mais que a todos os bens, ó meu Salvador amabilíssimo. Se quereis, enfim, que Vos peça graças, eu Vos peço duas: não permitais que ainda torne a ofender-Vos, fazei que Vos ame e depois disponde de mim segundo a vossa vontade.

— Maria, minha esperança, alcançai-me estas duas graças; é de vós que as espero.

Missa pelos Fiéis Defuntos

Mosteiro da Santa Cruz




O Mosteiro da Santa Cruz estará neste mês de Novembro celebrando a Santa Missa pelos fiéis defuntos.

Caso tenham interesse, podem enviar um e-mail com a lista de falecidos para:

mostsantacruz@gmail.com

Colocar o assunto do e-mail como "LISTA DE FALECIDOS".




terça-feira, 31 de outubro de 2017

Fins da Oração Mental


3ª feira da 22ª Semana depois de Pentecostes




In meditatione mea exardescet ignis – “Na minha meditação se acenderá o fogo” (Sl 38, 4)

Sumário. Para fazer bem a oração mental e tirar proveito dela, é preciso conhecer os seus fins, que são principalmente três: primeiro, a união mais íntima com Deus; segundo, a obtenção das graças necessárias; terceiro, o conhecimento da Santíssima vontade de Deus e a força para executá-la plenamente. Enganam-se, pois, aqueles que deixam de fazer meditação, porque nela não acham consolações ou doçuras. Lembremo-nos bem, que o que não faz oração mental, dificilmente perseverará na graça de Deus e dificilmente se salva.

I. Para que façamos bem a oração mental e tiremos dela grande fruto para a alma, devemos fixar o fim pelo qual a queiramos fazer. Primeiro, devemos fazer oração para nos unir mais a Deus. O que nos une a Deus, não são tanto os bons pensamentos do espírito, como os atos da vontade, os santos afetos. E são estes afetos que se excitam na meditação: como sejam os afetos de humildade, de confiança, de desapego, de resignação e, sobretudo, os de amor e de arrependimento dos próprios pecados. Os atos de amor, diz Santa Teresa, conservam aceso no coração o fogo do santo amor.

Em segundo lugar, devemos fazer a meditação a fim de alcançarmos de Deus as graças necessárias para progredir no caminho da salvação e especialmente a fim de alcançarmos a luz divina para evitar os pecados e empregar os meios que nos conduzem à perfeição. O grande fruto da oração é excitar-nos a rogar graças, visto que, de ordinário, Deus não concede as graças senão ao que as pedir. Escreve São Gregório: Deus quer ser rogado, quer ser constrangido, quer ser vencido pela importunação. Notemos estas palavras: Vult quadam importunitate vinci — “Quer ser vencido pela importunação”. Para obtermos certas graças mais importantes, às vezes não será bastante que as peçamos; deveremos insistir, e com nossos pedidos obrigar Deus a no-las conceder. Verdade é que em todo tempo o Senhor está pronto para nos atender; mas no tempo da meditação, quando estamos mais recolhidos a Deus, Ele nos concede auxílio com mais liberalidade.

O que sobretudo devemos pedir na oração é a perseverança e o santo amor. A perseverança não é uma única graça, senão uma corrente de graças, à qual deve corresponder a corrente de nossas orações. Se deixarmos de rezar, Deus deixará de nos dar o seu auxílio e assim nos perderemos. O que não medita, dificilmente perseverará na graça de Deus até à morte. — Devemos rezar e rezar muito, para obtermos de Deus o seu divino amor. Dizia São Francisco de Sales que o santo amor traz unidas consigo todas as virtudes: Venerunt autem mihi omnia bona pariter cum illa (1) — “Juntamente com ela vieram-me todos os bens”.

II. A oração não é senão um colóquio entre Deus e a alma. Esta lhe manifesta os seus afetos, os seus desejos, os seus temores, os seus pedidos; e Deus lhe fala ao coração, fazendo-lhe conhecer a sua bondade, o amor que lhe tem e o que a alma deve fazer para lhe agradar. D´onde resulta que não devemos ir à meditação para nela gozarmos consolações espirituais, mas principalmente para conhecermos o que Deus quer de nós. Digamos a Deus com Samuel: Loquere, Domine, quia audit servus tuus (2) — “Senhor, fazei-me conhecer o que quereis de mim, que eu quero fazê-lo”.

Alguns perseveram na oração, enquanto durem as consolações; mas, cessando estas, deixam a oração. Enganam-se, pois, saibamos bem, que em regra geral as almas santas sofrem aridez. Por isso escreve Santa Teresa:

“O Senhor experimenta os que o amam com aridez e tentações. Mas por mais que dure a aridez, não deixe a alma de fazer oração; tempo virá em que tudo lhe será pago com abundância.”
— O tempo de aridez é, portanto, o tempo de maior lucro. Humilhemo-nos e resignemo-nos; porque tal oração nos trará mais fruto do que qualquer outra. Se não pudermos fazer mais, basta que repitamos então:

† Meu Jesus, misericórdia!

Senhor, ajudai-me tende piedade de mim, não me abandoneis. Recorramos também à nossa consoladora, Maria Santíssima. Bem-aventurado o que não deixa a oração no tempo de desolação! Deus o encherá de graças.

Ah, meu Deus! Como posso pretender ser consolado por Vós, eu que mereci estar no inferno, separado de Vós para sempre e sem esperança de Vos poder ainda amar? Não me queixo, pois, meu Senhor, de que me privais das vossas consolações; não as mereço nem as exijo. Contento-me em saber que não repelis a alma que Vos ama. Não me priveis de vosso amor e depois tratai-me como quiserdes. Se é vossa vontade que até minha morte e por toda a eternidade eu esteja em aflição e desolação, fico satisfeito. Basta que deveras Vos possa dizer: Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas.

— Maria, Mãe de Deus, tende piedade de mim!
Referências:

(1) Sb 7, 11
(2) 1 Rs 3, 10

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O pecador desonra a Deus


2ª feira da 22ª Semana depois de Pentecostes




Per praevaricationem legis Deum inhonoras – “Pela transgressão da lei desonras a Deus” (Rm 2, 23)

Sumário. O pecador desonra a Deus, porque, por um vil interesse, por uma indigna satisfação, renuncia à amizade divina. Se ao menos não O desonrasse na sua presença. Mas não, desonra-O ante seus próprios olhos, pois que Deus está em todos os lugares; e, mais ainda, para desonrá-Lo serve-se do mesmo corpo que Deus lhe deu para o glorificar. Que negra ingratidão! Quão amargurado não deve sentir-se o Coração amabilíssimo de Jesus!

I. O pecador não só injuria a Deus, mas também o desonra: Pela transgressão da lei desonras a Deus. Sim, porque renuncia à graça divina e por uma indigna satisfação calca aos pés a amizade de Deus. Se um homem perdesse a amizade divina para ganhar um trono, ou mesmo o mundo inteiro, com certeza faria um grande mal; porque a amizade de Deus vale mais que o mundo, mais que mil mundos. E porque será que o pecador ofende a Deus? Por um punhado de terra, por um ímpeto de cólera, por um prazer brutal, por uma quimera, por um capricho: Violabant me propter pugillum hordei et fragmen panis (1) — “Eles me desprezaram por um punhado de cevada e por um pedaço de pão”.

Quando o pecador se põe a deliberar se consentirá ou não consentirá no pecado, toma, por assim dizer, nas mãos a balança e vê o que pesa mais: se a graça de Deus, ou essa paixão, essa quimera, esse prazer. Quando por fim consente, declara que, quanto a si, essa paixão, esse prazer, valem muito mais do que a amizade divina. É deste modo que Deus é desonrado pelo pecador! — Deus queixa-se disso pela boca do Profeta, dizendo: A quem me assemelhastes vós, e igualastes? (2) Sou Eu porventura tão vil a vossos olhos, que mereça ser posposto a uma indigna satisfação?

Mais. Dizem São Cipriano e Santo Tomás que, quando o pecador, para satisfazer qualquer paixão, ofende a Deus, converte em divindade essa paixão, porque dela faz seu último fim. De forma que, segundo a palavra de São Jerônimo, uma paixão no coração é como que um ídolo no altar. — Quando Jeroboão se revoltou contra Deus, quis atrair consigo o povo à idolatria, e por isso apresentou-lhes ídolos, dizendo: Ecce dii tui, Israel (3) — “Eis aqui os teus deuses”. De igual modo pratica o demônio: apresenta ao pecador qualquer satisfação desordenada e diz: Que tens tu que ver com Deus? Ei-lo aqui, o teu deus; é este prazer, esta paixão; toma-os e deixa a Deus. E o pecador, dando o consentimento, assim o faz: no coração adora a satisfação em vez de Deus: Vitium in corde est idolum in altare.

II. Se ao menos o pecador, desonrando a Deus, não o desonrasse na sua presença; se, injuriando-O, não abusasse dos próprios benefícios divinos! Mas não, o atrevido injuria-O e desonra-O ante seus próprios olhos, pois que Deus está em todo o lugar; injuria-O e desonra-O servindo-se das mesmas criaturas, do mesmo corpo que Deus lhe deu para O glorificar.

É isto o que mais amargura o Coração de Jesus e O faz prorromper em sentidas queixas: Filios enutrivi et exaltavi; ipsi autem spreverunt me (4) — Criei uns filhos, diz o Senhor, nutri-os e engrandeci-os, mas com a mais negra ingratidão eles me desprezaram e continuam a desprezar-me ante meus próprios olhos: Ad iracundiam provocant me ante faciem meam (5) — “Estão provocando a minha ira diante de minha face”.

Ó meu Deus, Vós sois um bem infinito, e mais de uma vez Vos troquei por um miserável prazer, que logo desapareceu, apenas saboreado! Apesar de serdes assim desprezado, Vós me ofereceis o perdão, se o quiser e prometeis receber-me na vossa graça, se me arrepender de Vos haver ofendido. Ah sim, meu Senhor, arrependo-me de todo o coração de Vos haver ultrajado; soberanamente detesto o meu pecado. Eis que já volto a Vós; Vós me acolheis e abraçais como a um filho. Agradeço-Vos, bondade infinita. Mas socorrei-me agora: não consintais que Vos expulse ainda de meu coração.

O inferno não deixará de me tentar, mas Vós sois mais poderoso que o inferno. Sei que nunca mais me separarei de Vós, se eu sempre me recomendar a Vós. Eis, pois, a graça que me haveis de fazer, a de sempre me recomendar a Vós e de Vos suplicar como o faço agora. Assisti-me, Senhor, dai-me luz, dai-me força, dai-me a perseverança, dai-me o vosso paraíso; mas concedei-me sobretudo o vosso amor, que é o verdadeiro paraíso das almas. Amo-Vos, bondade infinita, e quero sempre amar-Vos. Ó Pai Eterno, atendei-me pelo amor de Jesus Cristo. — Ó Maria, vós sois o refúgio dos pecadores, socorrei um pobre pecador que quer amar o vosso Deus.
Referências:

(1) Ez 13, 19
(2) Is 40, 25
(3) 3 Rs 12, 28
(4) Is 1, 2
(5) Is 62, 3

domingo, 29 de outubro de 2017

O servo desumano e o perdão das injúrias

Domingo da 22ª Semana depois de Pentecostes




Sic et Pater meus coelestis faciet vobis, si non remiseritis unusquisque fratri suo de cordibus vestris – “Assim vos tratará meu Pai celestial, se do íntimo dos vossos corações não perdoardes cada um a seu irmão” (Mt 18, 35)

Sumário. O servo descaridoso, a quem o dono perdoou muito e não quis apiedar-se do companheiro que lhe devia pouco, é uma imagem viva daqueles cristãos que não querem perdoar a seu inimigo. Meu irmão, não te creio culpado de tamanho delito; mas considera bem, não sejas do número dos que julgam com severidade os defeitos dos outros e exigem tolerância para os defeitos próprios e talvez maiores. Sendo assim, não tardes em emendar-te; senão, serás julgado com o mesmo rigor e condenado pelo Pai celestial.

I. No evangelho de hoje, Jesus Cristo compara o reino dos céus a um rei que quis tomar contas aos seus servos. E, “tendo começado a tomar as contas, foi-lhe apresentado um que lhe devia dez mil talentos. Como não tivesse com que pagar, mandou o seu senhor que o vendessem a ele e a sua mulher e a seus filhos, e tudo quanto possuía, para com isto ser pago. O servo, porém, lançando-se-lhe aos pés, o implorava dizendo: Tem paciência comigo, que eu te pagarei tudo. Compadecido então desse servo, o senhor deixou-o em liberdade, e lhe perdoou sua dívida. — Mas tendo saído este servo, encontrou-se com um de seus companheiros que lhe devia cem dinheiros; e, pondo-lhe as mãos, sufocava-o dizendo: Paga-me o que deves. E o companheiro, prostrando-se-lhe aos pés, lhe implorava, dizendo: Tem paciência comigo, que te pagarei tudo. Mas ele não quis; e fez metê-lo em prisão até pagar a dívida: Misit eum in carcerem, done redderet debitum.”

Meu irmão, ao ouvir tamanha crueldade, talvez nunca sucedida, sem dúvida te sentes comovido. Quantos há, porém, que se comovem com a parábola e tropeçam na realidade! — Com efeito, Jesus Cristo (figurado pelo rei) mostra-se no tribunal da penitência tão misericordioso para com os cristãos, que basta um ato de contrição para lhes serem perdoadas todas as culpas, representadas pelo débito enorme de dez mil talentos. Ao contrário, os cristãos, (figurados pelo servo descaridoso) são tão exigentes, que, apesar do preceito de Deus, se recusam a perdoar ao próximo as ofensas recebidas, simbolizadas na pequena quantia de cem dinheiros.

Não te quero julgar réu de tamanha desumanidade. Examina, porém, se não és porventura do número daqueles que, deixando-se dominar pela ira, querem que para com eles se use de paciência, sem que eles a tenham de praticar para com os outros; isto é, julgam com rigor os pequenos defeitos dos outros, e exigem condescendência a respeito dos próprios defeitos que são muito maiores.

II. Coisa assombrosa! Diz o Eclesiástico: O homem, um bicho da terra guarda rancor e quer vingar-se de um seu irmão; e depois atreve-se a implorar a misericórdia de Deus. Quem poderá interceder para obter o perdão dos pecados desse temerário: Quis exorabit pro delictis illius? (1) Talvez haverá muitos que rogarão ao Senhor julgue sem misericórdia a quem foi misericordioso (2). — É o que parece insinuar Jesus Cristo, quando, continuando a parábola do servo impiedoso, acrescenta: “Os outros servos, porém, seus companheiros, vendo o que se passava, sentiram-no fortemente, e foram dar parte a seu senhor de tudo o que tinha acontecido. Então seu senhor o chamou, e lhe disse: Servo mau, toda a dívida te perdoei, porque me rogaste. Pois, não devias também compadecer-te do teu companheiro, como eu me compadeci de ti? Indignado, entregou-o o seu senhor aos verdugos, até pagar tudo que devia. Assim vos tratará meu Pai celestial, se do íntimo dos vossos corações não perdoardes cada um a seu irmão.”

Ó Jesus, meu divino Redentor, visto que por palavras e por exemplos me ensinastes a amar os seus inimigos, a fazer bem aos que me odeiam, a rogar aos que me perseguem e caluniam (3): eis que agora, prostrado na vossa presença, resolvo seguir sempre, e em todas as coisas, esses ensinos santíssimos. Sim, meu Jesus, por amor de Vós perdoo a quem me haja ofendido, e peço-Vos que também lhe perdoeis. Dai-lhe prosperidade nas empresas, aumentai-lhe as riquezas, cumpri-lhe os desejos, e sobretudo inspirai-lhe no coração sentimentos de caridade e de paz, a fim de que, extinta toda discórdia, possamos unanimemente servi-Vos neste mundo e gozar de vossa presença no outro.

Perdoai-me, pois, as minhas dívidas, assim como eu perdoo aos meus devedores, e “guardai-me com piedade contínua, para que, sob a vossa proteção, fique eu livre de todas as adversidades, e, para glória de vosso nome, seja sempre fervoroso no exercício das boas obras.”
† Doce coração de Maria, sede minha salvação.
Referências:

(1) Eclo 28, 5
(2) Tg 2, 13
(3) Mt 5, 44

sábado, 28 de outubro de 2017

Grandeza da Misericórdia de Maria Santíssima

Sábado da 21ª Semana depois de Pentecostes



Transite ad me omnes qui concupiscitis me, et a generationibus meis implemini – “Passai-vos a mim todos os que me cobiçais, enchei-vos dos meus frutos” (Eclo 24, 26)


Sumário. Quando a Santíssima Virgem vivia ainda na terra, já não podia ver algum necessitado sem socorrê-lo. Quanto mais misericordiosa não será agora que está no céu, de onde melhor vê as nossas misérias e nos ama com coração de Mãe! Não nos descuidemos portanto de recorrer a uma Mãe tão boa em todas as nossas necessidades e de pôr nela toda a nossa esperança. Mas, ao mesmo tempo, deixemos de lhe amargurar o coração pela nossa tibieza e pelos nossos pecados.

I. Considera que Maria é uma advogada tão piedosa, que não só ajuda ao que a ela recorre, mas ela mesma vai à procura dos miseráveis para os defender e salvar. Eis como ela convida a todos, animando-nos a esperarmos todos os bens, se a ela recorrermos: “Passai-vos a mim todos e enchei-vos dos meus frutos.” — “O demônio”, diz São Pedro, “vai sempre ao redor de nós, buscando quem possa tragar”; mas nossa divina Mãe, acrescenta Bernardino de Bustis, vai sempre ao redor de nós buscando a quem possa salvar: Circuit, quaerens quem salvet.

Maria é Mãe de misericórdia porque a piedade que tem de nós faz que de nós se compadeça e procure sempre salvar-nos; assim com uma mãe não pode ver seus filhos em perigo de se perderem e deixar de os ajudar. E quem, depois de Jesus Cristo, pergunta São Germano, interessa-se mais pela nossa salvação do que vós, ó Mãe de misericórdia? — Ela certamente nos ajudará quando a invocarmos e nunca jamais foi alguém por ela desamparado. Isso, porém, não basta a seu Coração piedoso. Como diz Ricardo de São Victor, ela previne as nossas súplicas e procura ajudar-nos antes que nós a invoquemos. Apenas vê alguma miséria, socorre logo e não pode ver algum necessitado sem o ajudar.

A Santíssima Virgem assim praticava desde a sua vida terrestre, como sabemos pelo fato sucedido nas bodas de Caná na Galileia. Vindo a faltar o vinho, ela não esperou até ser rogada; mas, compadecendo-se da aflição e do pejo daqueles esposos, pediu ao Filho que os consolasse dizendo: Vinum non habent (1) — “Eles não têm vinho”; e obteve que seu Filho, por um milagre, convertesse a água em vinho. Pois bem, diz São Boaventura, se foi tão grande a piedade de Maria para com todos quando estava ainda em terra, muito maior sem dúvida será a sua piedade para nos socorrer, agora que está no céu, onde conhece melhor as nossas misérias e mais de nós se compadece.

II. Ah! Não nos descuidemos jamais de recorrer à nossa divina Mãe em todas as nossas necessidades, pois que sempre será achada com as mãos repletas de misericórdia; sempre disposta a ajudar ao que a invoque, e tão desejosa de nos fazer bem e de nos ver salvos, que ela mais deseja conceder-nos graças do que nós desejemos recebê-las. São Boaventura chega a dizer que a Bem-aventurada Virgem se julga ofendida não só pelos que a injuriam positivamente, mas também por aqueles que lhe não pedem graças. Recorramos, pois, sempre a esta Mãe de misericórdia e digamos-lhe o que dizia o mesmo Santo: In te, Domina, speravi, non confundar in aeternum — “Em vós, Senhora, esperei, não permitais que eu seja confundido para sempre”. Mas ao mesmo tempo deixemos de lhe amargurar o Coração pela nossa tibieza e pelos nossos pecados.

Ó Rainha do céu, Maria Santíssima, eu, que era outrora escravo do demônio, consagro-me agora e sempre a vosso serviço e ofereço-me a vós, para vos honrar e servir pelo restante da minha vida. Recebei-me, então para vosso servo, e não me rejeiteis como o merecera. Ó minha Mãe, em vós hei posto todas as minhas esperanças. Eu bendigo e agradeço a Deus, que por sua misericórdia me deu esta confiança em vós. Verdade é que, no passado, caí desgraçadamente no pecado; mas tenho confiança de haver obtido perdão pelos merecimentos de Jesus e vossas orações.

Entretanto, isto não basta, ó minha Mãe; um pensamento me aflige: posso de novo perder a graça de Deus. Os perigos são contínuos, os inimigos não dormem, novas tentações virão assaltar-me. Ah! Soberana minha, protegei-me, socorrei-me nos assaltos do inferno, e não permitais me aconteça ainda no futuro cometer pecado e ofender a vosso divino Filho Jesus. Não, não perca eu de novo a minha alma, o paraíso e Deus. Peço-vos esta graça, ó Maria, não m’a recuseis, antes alcançai-m’a pela vossa intercessão. Assim espero.
Referências:

(1) Jo 2, 3

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Quarta palavra de Jesus Cristo na Cruz


6ª feira da 21ª Semana depois de Pentecostes



Et circa horam nonam clamavit Iesus voce magna dicens: Deus meus, Deus, meus, ut quid dereliquisti me? – “E perto da hora nona deu Jesus um grande brado, dizendo: Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” (Mt 27, 46)

Sumário. Em castigo de nossos pecados, tínhamos merecido que Deus nos abandonasse nos abismos infernais entregues à desesperação eterna. Mas, para nos livrar, quis Jesus tomar sobre si a pena que nos era devida e ser entregue pelo Pai a uma morte sem alívio. Demos graças à bondade divina e em nossas desconsolações espirituais unamos a nossa desolação à de Jesus agonizante; lembremo-nos do inferno merecido e digamos: Senhor, seja feita a vossa santa vontade!

I. Escreve São Leão, que aquele brado do Senhor não foi uma queixa, mas um ensino: Vox ista doctrina est, non querela. Ensino pelo qual Jesus nos quis mostrar quão grande é a malícia do pecado, que, por assim dizer, obrigou Deus a entregar a uma pena sem alívio seu Filho amadíssimo, unicamente por se ter este encarregado de satisfazer pelos nossos crimes. — Jesus não foi então abandonado pela divindade, nem privado da glória, que fora comunicada à sua alma bendita desde o primeiro instante de sua criação; foi, porém, privado de todo o consolo sensível com que Deus costuma confortar os seus servos fiéis, no meio de seus sofrimentos e foi entregue às trevas, a temores e amarguras, penas essas por nós merecidas. No horto o Getsêmani, Jesus sofreu igual privação da presença sensível da divindade; mas a que sofreu na cruz foi mais completa e mais amargosa.

Mas, ó Pai Eterno, que desgosto Vos deu jamais vosso Filho inocente e obedientíssimo, para o punirdes com uma morte tão amargosa? Vêde como está pregado no lenho, a cabeça atormentada pelos espinhos, como está suspenso em três pregos de ferro, apoiando-se nas mesmas chagas. Abandonaram-No todos, mesmo os seus discípulos; todos ao redor o escarnecem e blasfemam contra Ele; porque é que Vós, que tanto O amais, O haveis também abandonado?

Lembremo-nos que Jesus se tinha encarregado dos pecados de todos os homens. Por isso, muito embora fosse Jesus, quanto à sua pessoa, o mais santo de todos os homens, ou antes a santidade mesma, todavia pelo ônus assumido de satisfazer por todos os pecados, parecia ser o maior pecador do mundo, como tal se fizera réu em lugar de todos e se oferecera a pagar por todos. E já que nós merecíamos ser abandonados eternamente no inferno, entregues à desesperação eterna, Jesus quis ser entregue a uma morte sem consolação alguma, a fim de nos livrar assim da morte.

II. Demos graças a bondade do nosso Salvador, por ter tomado sobre si as penas por nós merecidas, a fim de nos livrar assim da morte eterna. Procuremos ser d’oravante gratos ao nosso libertador, expelindo de nosso coração todo o afeto que não seja para Ele. Quando estivermos em desconsolação espiritual, privados da presença sensível da divindade, unamos nossa desolação à que padeceu Jesus na hora de sua morte. — O Senhor não ficará ofendido, se nesse desamparo dissermos o que Ele mesmo no horto disse a seu Pai divino: “Pai meu, se é possível, passe de mim este cálice” (1) mas devemos logo acrescentar como Ele: “Todavia não seja como eu quero, mas sim como Tu”.

Se a desolação continuar, devemos repetir o mesmo ato de conformidade, assim como Jesus o repetiu durante as três horas de sua oração no Horto: Et oravit tertio, eumdem sermonem dicens (2) — “Orou pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras”. Diz São Francisco de Sales, que Jesus é igualmente amável quando se deixa ver como quando se esconde. — Pelo mais, o que mereceu o inferno e se vê fora dele, sempre deve dizer: Benedicam Dominum in omni tempore (3) — “Bendirei o Senhor em todo o tempo”. Senhor, não mereço consolações; fazei com que Vos ame sempre, e estou contente por viver em desolação por todo o tempo que Vos aprouver. Ah! Se os réprobos pudessem em suas penas conformar-se assim com a vontade divina, o inferno deixaria de ser inferno.

Ó meu Jesus, pelos merecimentos de vossa morte, rogo-Vos não me desampareis no grande combate que na hora da morte terei de sustentar contra o inferno. Então todos me abandonarão e não me poderão mais valer; Vós porém não me abandoneis, Vós morrestes por meu amor e só me podereis socorrer nesse momento supremo. Fazei-o pelo merecimento da pena que sofrestes no vosso desamparo, pelo qual nos merecestes não sejamos desamparados pela divina graça, conforme os nossos pecados tinham merecido. Fazei-o também pela dor que então sentiu vossa e minha amada Mãe, Maria.
Referências:

(1) Mt 26, 39
(2) Mt 26, 44
(3) Sl 33, 2