terça-feira, 22 de março de 2011

É a guerra contra a Líbia uma guerra justa?

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Carlos Nougué

Resumamos a doutrina de Santo Tomás de Aquino a respeito da guerra justa. Segundo ele, para que uma guerra seja justa, é preciso que se cumpram as seguintes precondições:

1) Que a causa que a move seja justa. Assim, não é justo fazer guerra para impor uma fé, como fazem os muçulmanos; conquanto seja justo mover guerra para permitir o exercício da fé verdadeira ou católica, como fizeram os cruzados.[1]

2) Deve ser reta a intenção de quem faz a guerra, ou seja, deve-se ter a intenção de fazer com que retorne a justa paz e a verdadeira ordem.

3) A guerra deve ter possibilidade de êxito, sob pena de nem ser guerra, mas mera sedição, revolta, etc. Foi o que fizeram os essênios e outros ao revoltar-se contra o Império Romano, sem a menor possibilidade de vitória.

4) Mais que isso, porém: ainda que movido por uma justa causa e intenção, e com possibilidade de vitória, aquele que guerreia não tem direito de usar de mentiras. Naturalmente, não deve revelar seus planos táticos ao inimigo. Mas uma coisa é não revelá-los; outra é mentir, que é pecado em qualquer situação. Assim, ao que parece, o estratagema de Pearl Harbor já condenaria os EUA por abuso do direito de guerra.

Mas, antes de considerarmos a atual guerra contra a Líbia, movida por poderosa coalizão internacional, consideremos, para efeitos de comparação, a Guerra do Iraque.

1) Era justa a causa da guerra contra o Iraque? Ainda que demos (mas sem conceder) que, sim, era justa, por tratar-se de impedir novos ataques como o levado a efeito contra as torres gêmeas, não o era por outro ângulo: o de impor o regime democrático-liberal. Isto é guerrear para impor uma espécie de fé ― e fé falsa. Com efeito, dizia São Pio X na Carta sobre Le Sillon: “A democracia é uma religião mais universal que a Igreja [...]. Resulta do grande movimento de apostasia organizado em todos os países para o estabelecimento de uma Igreja Universal que não terá dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões”.

2) Tinha Bush intenção reta ao mover a guerra? Embora seja quase infantil acreditar que não fosse movido também por interesses econômicos os mais mesquinhos,[2] demos outra vez (novamente sem conceder) que não se movia por tais interesses.

3) Tinham os EUA possibilidade de vitória? Sim, é claro.

4) Mas é óbvio que tais “dares” se dissipam ao considerar-se que, em verdade, a alegada e propalada razão imediata da guerra era já uma grande mentira: a fabricação pelo Iraque de armas químicas. (Afora o fato de nunca, até hoje, se terem apresentado provas da suposta ligação direta entre Bin Laden e Saddam Hussein.) Isto, de per si, por ser mentirosa a própria alegada razão imediata da guerra, já macula a ação dos EUA e seus aliados.

5) Ademais, não sabiam os EUA que a situação interna do Iraque se tornaria pior, sem paz nem ordem, com a queda do presidente daquele país? Quem não sabia que, se Saddam não tivesse sido duro para conter a guerra fratricida das facções islâmicas rivais, incluindo os sanguinários curdos, o Iraque já seria sob Saddam o que é hoje: um território banhado de sangue do fanatismo de uma falsa religião?

6) Mas, como se disse, se não interesses econômicos petrolíferos, pelo menos moveu os EUA a atacar o Iraque a tentativa de impor o credo liberal-democrático. E isso também torna injusta a guerra em questão, porque não era intenção de Bush reinstaurar ali a ordem e paz. Estas, por certo aspecto, já se davam sob o governo de Saddam; ao passo que, como se pode ver perfeitamente hoje, o estado de coisas depois da guerra e do justiçamento de Saddam seria previsivelmente pior que o anterior. Tampouco, portanto, foi justa a guerra no Iraque por este ângulo: intenção não reta, e ao menos grande probabilidade de um estado pior que o anterior. 

7) Além disso, pensemos: o regime de Saddam era o único regime islâmico que dava razoável liberdade à Igreja (havia até um ministro católico). O que sucedeu após a queda e morte de Saddam? O massacre sistemático dos católicos iraquianos. E quem é o principal aliado dos EUA no mundo árabe? A monstruosa Arábia Saudita, lugar de grande perseguição dos católicos.

8) Ademais, não sejamos ingênuos: tanto Saddam como Bin Laden eram agentes dos serviços secretos norte-americanos. Depois, naturalmente, os EUA perderam o controle sobre eles. Sucedeu algo semelhante ao ocorrido no Irã: para derrubar o xá Reza Parlevi, que estava montando a maior frota do Golfo Pérsico, os serviços secretos britânicos estimularam sua derrubada pelo movimento xiita. Depois, é claro, perderam o controle sobre os aiatolás; mas foram a causa primeira da ascensão destes.[3]

Ou seja, a Guerra do Iraque não foi uma guerra justa.

Consideremos agora a atual guerra contra a Líbia.

1) Diga-se de antemão que Kadafi é um perfeito tirano, e que sob sua tirania a fé católica não pode propagar-se, o que de per si, pelo que dissemos, já torna seu regime ilegítimo.

2) Perguntemo-nos, porém, sobre os móveis da guerra movida pela coalizão liderada pelos Estados Unidos, com apoio (relativo) da chamada Liga Árabe e com abstenção (afinal de contas, conivente) da China, da Rússia, etc., na ONU. Podemos dar (ainda sem conceder), também aqui, que tal coalizão não se mova de modo algum por interesses econômicos mesquinhos...

3) Mas pode-se dar que seu móvel central seja outro senão a progressiva instalação no mundo da democracia liberal, importante alicerce para a ereção de um efetivo governo mundial? É verdade que, na marcha para tal governo, podem as forças que concorrem para sua constituição absorver as Chinas e as Arábias Sauditas da vida (por sua importância para a manutenção do capitalismo internacional, que por sua vez é alicerce fundamental da democracia liberal), neutralizando-as no bojo de tal impulso. Mas também é verdade que, se puderem livrar-se das pedras no sapato de sua religião universal, os condutores da globalização certamente o farão, como agora estão fazendo com uma série de governos tirânicos do mundo árabe-africano, entre os quais se inclui o de Kadafi. Só por isso já se pode dizer injusta a guerra movida contra a Líbia: ela tem por fim a instauração pela força de uma fé – e de uma falsa fé.

4) E que dizer da sucessão de mentiras sobre as quais se fundam os argumentos dos atacantes?

a) Kadafi é, sim, um tirano; mas não o são também os governantes de diversos países aliados da coalizão que ora ataca a Líbia, como o da Arábia Saudita?

b) Kadafi está atacando populações civis ou está atacando grupos rebeldes?

c) Os ataques aéreos da coalizão atacante não atingem alvos e populações civis? 

d) A ação militar da coalizão atacante visa apenas a bloquear o espaço aéreo da Líbia?

e) Essa mesma ação militar não visa a derrubar nem a matar Kadafi?

5) Tal sucessão de mentiras, de per si, já macula a guerra movida contra a Líbia, e faz ao menos suspeitar que seja movida também por mesquinhos interesses econômicos.

6) Mas, acima de tudo, não se deve perder de vista que o que move centralmente esta nova guerra levada a cabo pela atual liderança mundial é o próprio vetor da história em seus estertores: a marcha para um governo mundial anticristão, democrático-liberal – o cenário do surgimento do Anticristo. E não é preciso que os governantes dos EUA, de Israel, da França, etc., bem como os papas pós-conciliares, tenham consciência de que sua ação conduz à entronização desse tenebroso e apocalíptico personagem, por meio do qual os poderes infernais tentarão derrotar total e definitivamente a Realeza Total de Nosso Senhor Jesus Cristo. Basta que ajam, de algum modo, segundo tais poderes.  

E, com efeito, ou se está sob a bandeira de Cristo Rei e sua Igreja (não a Igreja do homem), ou se está sob o pavilhão de Satanás. Tertium non datur: não há terceira possibilidade.

Adendo: Tampouco pode o vencedor de uma guerra castigar o derrotado em proporção maior que a de sua agressão. No máximo o olho por olho, dente por dente. Ora, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki eram imensamente desproporcionais ao dano causado pelo derrotado (que, aliás, já estava realmente derrotado quando sofreu o holocausto nuclear): a bomba atômica não mata apenas inimigos; afeta parte da natureza humana, degenera-a ao longo de gerações. Crime inominável, que clama ao céu por vingança. E crime cometido contra as duas únicas cidades japonesas com catedrais católicas; cidades compostas de grande maioria de xintoístas convertidos ao catolicismo. Como já se disse, se não tivessem ganhado a Segunda Guerra Mundial, os EUA é que se teriam sentado no banco dos réus de algum tribunal como o de Nuremberg. Com efeito, pode alguém honestamente afirmar que bombas atômicas são menos criminosas que câmaras de gás ou que gulags?    


[1] Diga-se, aliás, que um governo não cristão perde a legitimidade no momento mesmo em que começa a impedir a propagação da verdadeira fé.

[2] Com efeito, como acreditar em tal desinteresse se acabamos de ler que, segundo o megainvestidor Warren Buffett – o terceiro homem mais rico do mundo segundo a revista Forbes –, as ações japonesas são bons investimentos após o dramático terremoto e tsunami que arrasaram o Japão, sobre cuja cabeça, ademais, pende a espada de Dâmocles de uma catástrofe nuclear... Assim é o mundo iniciado pela revolução industrial inglesa e pela lei de Le Chapelier (da revolução francesa), que esmagaram tanto a produção artesanal e as unidades camponesas familiares quanto as corporações de ofício. Nem é preciso dizer que, com tal esmagamento, se esmagaram também a família e toda uma ordenação socioeconômica ainda reta.

[3] Nada de surpreendente, se pensarmos que foram os ingleses, mediante Lawrence da Arábia, quem forjou os estados nacionais daqueles beduínos do deserto que constituíam grande parte do povo islâmico; e o fizeram para derrotar seus inimigos na Primeira Guerra Mundial, ainda que à custa da islamização de boa parte da terra. E não nos esqueçamos, sobretudo, de que foram os EUA quem pressionou a União Europeia a aceitar em seu seio a islâmica Turquia (que sempre fora considerada da Ásia Menor); e, especialmente, quem fez de tudo para que os países europeus aceitassem a entrada maciça de imigrantes muçulmanos. Por quê? Será preciso repetir o óbvio? Para acabar com o que restava de Cristandade. (Aliás, já a Primeira Guerra Mundial não se dera, essencialmente, para acabar com o que já então era o único império católico, o Austro-Húngaro? E a revolução bolchevique também não ocorrera para acabar com o Império czarista, não católico, é verdade, cismático, é verdade, cesaripapista, é verdade, mas ao fim e ao cabo cristão aos olhos do inimigo? E não ocorrera a sanguinária revolução francesa para acabar não só com a monarquia, mas sobretudo com a Igreja Católica e sua união com os poderes temporais? E assim por diante.)